Situada
a poucas dezenas de quilômetros da praia, entre Itanhaém
e Peruíbe, a ilha denominada Queimada Grande, além
de ter em seu entorno o maior banco de corais do Brasil, é
o único viveiro natural da jararaca-ilhoa, uma espécie
que só vive ali e que é um dos mais estranhos
fenômenos biológicos que se conhecem no mundo
dos vertebrados. Essa enorme ilha possui duas elevações
visíveis à distância: a primeira, mais
plana, alcança 90 metros de altitude, é onde
está localizado um farol automático; a segunda
é formada por um pico de 206 metros. Entre essa ilha
e o continente, encontra-se uma outra bem menor, denominada
Queimada Pequena.
O desembarque na Queimada
Grande é extremamente difícil, mesmo nos dias
mais calmos. Não havendo praias nem enseadas, é
aconselhável o uso de "chatas" (pequenos
barcos de fundo chato) pois o local mais acessível
para desembarque é constituído por plataformas
rochosas, limosas, que mergulham repentinamente e verticalmente
até o fundo, situado a 30 metros.
Sua superfície é
estimada em 430 mil m² (1000 metros de comprimento por
500 na parte mais larga) e a topografia é toda irregular.
Do ponto de desembarque, subindo uma vintena de metros em
aclive rochoso, aparece um pequeno trecho de terreno inclinado
e recoberto por capim. Logo após, em frente, rochas
formando paredão, com quase 3 metros de altura, indicam
a crista do esboço do mini-istmo; do outro lado, as
rochas já descem para o mar. À esquerda do local
de acampamento, seguindo a crista chega-se a ponta da ilha
voltada para o lado do continente; à direita, um capinzal,
depois de cobrir ligeira descida, prossegue acima por morro
íngreme até 900 metros, dominando e alastrando-se
por área relativamente plana de 200 metros quadrados
aproximadamente, onde se situa o farol. No limite dessa plataforma,
ainda do lado do desembarque, há vestígios de
habitações de alvenaria, de tanques de água
e de embasamentos que serviam para elevar objetos pesados
do nível do mar até a plataforma.
Depois do capinzal, para frente
e para os lados, surge, exuberante vegetação
composta por árvores altas, formando maciço
bosque que apresenta duas pequenas clareiras; bordejando a
mata à esquerda, há uma "cerca viva"
formada de espessa sebe espinhosa e que tem essa forma devido
aos fortes ventos que sopram nessa altura; em frente, o caminho
para o pico, de onde se avista o Atlântico em sua imensidão.
Do lado direito, a mata segue cobrindo toda a região,
precipitando-se por onde pode, através das rochas,
por despenhadeiros ou ladeiras, até quase o nível
do mar, onde é representada por vistoso bananal, ladeado
de rochas. Caminhando por estas, à esquerda, o mar,
à direita, mais rochas de tamanho agigantado. Insistindo
em se fazer o retorno por esse caminho que é o pior,
pelo fato de logo a seguir haver íngreme e perigosa
ladeira cheia de precipícios, depara-se com a entrada
semi-escondida de uma gruta, enorme funil, de onde nas noites
de mar agitado retumba o som cavo das ondas.
A Fama da Ilha
Os faroleiros habitaram a
ilha até 1925. A partir dessa data, o homem retirou-se
de lá batido pela solidão e pelos acidentes
fatais ocasionados por uma serpente, espécie de jararaca,
que infesta e domina a Queimada Grande, tornando-se um dos
locais mais perigosos do território brasileiro. O farol
exige reabastecimento periódico e os homens da Marinha,
que fazem esse serviço, geralmente por preucação
e por medo das jararacas, com muita razão põem
fogo no capinzal, que normalmente chega à altura de
um homem e que se estende pelo íngreme caminho que
leva ao farol e suas redondezas. De longe, o que se vislumbra
nessas ocasiões é uma queimada grande; daí
o nome dado à ilha. A ilha tem outros habitantes: outra
espécie de cobra não venenosa (Dipsas albifrons
cavalheroi), absolutamente pacata, de coloração
esbranquiçada e malhas pretas. O número de exemplares
capturados é reduzido e, de modo geral, o tamanho desses
répteis não ultrapassa 40 centímetos.
No continente, serpentes desse mesmo gênero (Dipsas)
são conhecidas como o nome de dorme-dorme, uma alusão
à tendência que tem de não criar problemas.
A
fauna da ilha apresenta cinco lagartos descritos: três
são de tamanho pequeno, respectivamente Colobodactylus
taunay, Mabuya macrorhyncha e Hemidactylus mabouia; os outros
dois são lagartos apodos (sem pernas), vida subterrânea,
chamados vulgarmente cobra cega ou minhocão, Leposternon
microcephalum e Amphisbaena hogei. Há ainda citação
na literatura de Anura, representandos por duas espécies.
A fauna é rica em pássaros
marinhos, representados pela Fregata fregata e, principalemnte,
pelo mergulhão, Sula leucogaster, que é encontrado
fazendo ninho nos rochedos.
Nas
árvores da ilha, são encontradas diversas espécies
de pássaros, alimento predileto da jararaca-ilhoa,
Bothrops insulares, que sendo encontrada em quantidade impressionante
domina a fauna local e existe somente na Queimada Grande.
A atenção dos
pesquisadores do Instituto Butantã foi despertada para
essa espécie de jararaca, quando, a partir de 1914,
foram remetidas algumas partidas para a Seção
de Herpetologia.
Os
pesquisadores ficaram surpresos com a enorme quantidade de
jararaca-ilhoa existente na ilha. O Instituto Butantã
no período de 1914 a 1921 sem que houvesse interesse
em coletas contínuas ou maciças, recebeu perto
de 450 exemplares do temível ofídio, o que realmente
é um número assustador, tendo-se em vista o
tamanho da ilha.
Embora
a Bothrops insulares tenha pupila vertical (pupila em fenda
parecida com a do gato), características dos animais
de vida noturna, pesquisadores tiveram a atenção
voltada para os hábitos diurnos da serpente, verificando
posteriormente que era devido ao fato de se alimentarem quase
que exclusivamente de passarinhos.
As
serpentes do gênero Bothrops, B. jararaca, B. jararacussu,
B. cotira, B. alternatus (urutu-cruzeiro) etc, possuem pupila
vertical, evidência de animal notívago. Esses
répteis têm como alimento os roedores e necessitam
localizá-los e caçá-los em seu período
de atividade noturna, contando para isso com o "olho
de gato" e, principalmente, com um órgão
especial - fosseta loreal - espécie de radar térmico
que é visível externamente e representado por
um buraco situado entre o olho e a narina.
Na
Ilha Queimada Grande não foram encontrados roedores.
Se existiram, provavelmente foram dizimados pela insularis.
Estas, para sobreviverem, tiveram que procurar outro alimento
e voltaram-se para os passarinhos. Se a hipótese é
válida, nos milênios em que as cobras ficaram
insuladas adaptaram a vida arborícula e, atraídas
pelos locais, onde o alimento era mais farto, aprenderam a
passar longo tempo, mesmo dias, em imobilidade impressionante
junto aos frutos de determinadas árvores à espera
de pássaros. Além disso adquiriram provavelmente
a cor de transição do verde desbotado da folha
que começa a amarelecer, o que torna dificílimo
localizar uma dessas serpentes na folhagem, por mimetismo
tão imperssionante que engana a acurada visão
dos pássaros.
Se isto não bastasse,
o veneno da jararaca-ilhoa também sofreu mudanças
em relação ao das cobras do mesmo gênero
Bothrops. Além das características do grupo
(protolítico e coagulante), ficou mais tóxico,
talvez pela imperiosa necessidade de a serpente ter em abater
junto às árvores o alimento alado.
As cobras também são
encontradas em arbustos, nas pedras, no capinzal, bananal,
etc. Estão em todas as alturas e podem ser encontradas
nos locais mais diversos, sendo difícil localizá-las.
É comum encontrar a insularis em local que foi inspecionado
exaustivamente, por pessoal especializado, alguns minutos
antes. Felizmente as serpentes são lerdas e não
atacam sem razão.
Os passarinhos procuram a
ilha para abrigar-se das intempéries ou dos ventos
mais fortes. Acomodam-se em regiões mais protegidas.
São nesses locais que a jararaca-ilhoa se encontra
em maior quantidade.
A partir de 1946, técnicos
especializados do Instituto Butantã, visitaram algumas
ilhas do litoral, inclusive a Queimada Grande, dando margem
à publicações e trabalhos.
Em
1951, pesquisadores do Instituto Butantã, procedendo
exaustivas e rotineiras necropsias nos répteis da Seção
de Serpentologia, constataram a presença de anomalias
sexuais em exemplar de jararaca-ilhoa (Bothrops insularis).
Trabalhando com o material de que dispunham, os pesquisadores
fizeram o primeiro relato do que acharam, na Sociedade de
Biologia de São Paulo.
A partir desse ano, a Ilha
da Queimada Grande foi visitada sistematicamente por equipes
especializadas do Instituto Butantã.
A
anomalia sexual registrada pelos pesquisadores foi inicialmente
observada em exemplares de jararaca-ilhoa, classificada aparentemente
como macho, pela presença de seus hemipênis evaginados
(as serpentes tem duplo órgão peniano, direito
e esquerdo, situados na cauda, junto à abertura da
cloaca, normalmente retraídos; cada hemipênis,
dependendo da espécie de serpente, pode ser bifurcado
como acontece com a B. insularis).
Quando
a cavidade geral foi aberta, constatou-se a presença
de ovário, ovidutos, ovo atrésico (não
desenvolvido) e ausência de gônadas masculinas
(testículos). Aparentemente, tratava-se de um caso
isolado de anomalia sexual, denominado intersexualidade, ainda
não assinalado até então em outros répteis.
Outros exemplares de jararaca-ilhoa foram sendo submetidos
à rotineira necropsia e a surpresa foi ainda maior,
porque a constatação de anomalia sexual, com
pequenas variações, foi-se repetindo. Essa foi
a razão que levou à mobilização
de recursos e de esforços para um conhecimento pormenorizado
da população da Bothrops insulares, na tentativa
de determinar até que ponto a aberração
biológica influi nessa espécie isolada da ilha
da Queimada Grande.
As
excursões científicas prosseguiram e, em 1959,
os pesquisadores conseguiram terminar a primeira parte do
trabalho. O estudo foi feito determinando o número
de machos, de fêmeas e de intersexos, existentes nos
dois grupos de amostras: a primeira, composta pelo material
coletado entre 1914 e 1920 e que serviu para a descrição
da espécie; a segunda jornada, pelo material coletado
de 1946 a 1951. As duas amostras foram comparadas e os resultados
obtidos foram os seguintes: A Ilha da Queimada Grande tem
realmente uma enorme população de serpentes
jararaca-ilhoa, só assinaladas nesse local. Essa população
apresenta uma anomalia sexual - intersexualidade - que é
caracaterizada pela pesença de órgãos
copulatórios dos machos numa porcentagem elevada de
fêmas; as formas intersexuadas são férteis
embora apresentando uma diminuição de fertilidade;
não foram encontradas fêmeas puras fecundadas.
Há uma redução no número de machos.
Destaca-se desse conjunto um caso de hermafroditismo que foi
exaustivamente procurado pelos pesquisadores. Seria um caso
de hermafriditismo suficiente, pois a única serpente
encontrada nessas condições era potencialmente
autofecudante. Admite-se que tenha sido uma exceção,
principalmente entre vertebrados, onde esses casos são
muito raros. Nessas condições seria remota e,
assim mesmo muito forçada, a idéia da espécie
em questão progredir para reprodução
hermafrodita.
A Ilha da Queimada Grande
não deve ser tocada e nem suas cobras dizimadas, Ela
é um campo natural de experiência científica
a desafiar a curiosidade e o saber do homem.
Não se tem conhecimento
de população de vertebrados com esse tipo de
anomalia. Na literatura, é encontrada a descrição
de outros casos de intersexos em Sus paquensis (espécie
de porco das Novas Hébricas). Nesse grupo, os porcos
têm atrofia do testículo e os intersexos são
estéries. Essas formas anômalas são separadas
pois estão associadas à tradição
religiosa dos nativos.
Apesar
da ilha da Queimada Grande ser local realmente muito perigoso,
devido à quantidade de serpentes aí existentes
e à dificuldade em serem localizadas, os responsáveis
pelas diversas excursões científicas realizadas
aquele campo da biologia sempre receberam pedidos de pessoas
que desejavam acompanhar o limitado número de especialistas
que visitaram a ilha em diversas ocasiões.