Com
a extinção da Capitania de Itanhaém, que passou de novo para São
Vicente e com o êxodo da maior parte dos seus habitantes para o
interior, atraídos pela fama da descoberta das minas de ouro e de
pedras preciosas, os frades existentes também sentiram a decadência
com a diminuição da renda do Convento, o que os levou por sua vez
a retirarem-se para outros lugares onde pudessem ser melhor amparados.
Assim pois, no ano de 1833, só existia no convento um único frade,
Frei Manoel, de Santa Perpétua, e que viera na companhia de três
escravos, Pedro, Antonio e Roque. O frade, além das obrigações sacerdotais,
exercia o cargo de professor particular (não havia escola pública
nessa época) lecionando do meio dia em diante, tanto a menores como
a adultos, percebendo uma gratificação mensal paga pelos pais dos
alunos. Isto porém não podia satisfazer a vida atribulada do frade
que, idoso e doentio, julgava-se desprezado ou esquecido pelos seus
superiores, e, portanto, a morrer naquele soturno Mosteiro, d'antes
cheio de vida. O que escrevo não é fantasia e nem suposição, mas
sim o que, na minha infância, ouvi contarem velhos itanhaenses,
inclusive os meus avós, que prestaram seus serviços na extinção
do incêndio.
Costumava o frade, nos sábados depois da aula, mandar seus alunos
adultos, das seis às sete, afugentar os morcegos e suindaras que
infestavam a Sala do Trono e a capela-mor, utilizando-se eles de
varas, talos verdes de folhas de bananeiras e de ramos, auxiliados
pelos escravos.
Foi no dia 22 de março de 1833 que, seguindo o costumado, depois
de encerrada a aula, o frade mandou os alunos procederem à faxina,
dando caça aos morcegos. Porém, desta vez, usou, propositadamente,
ou não, de outro imprudente processo; durante a aula ele havia mandado,
pelos escravos, "archotes", com folhas secas de bananeiras, amarradas
em varas e, com esses acesos, os alunos, inconscientemente atacavam
os lugares escuros, desde a Sala do Trono, até a capela-mor, onde
se ocultavam os intrusos animais. É preciso notar que o madeiramento
que fora empregado nas construções dos forros, há mais de um século,
se achavam ressecados e carcomidos pelo cupim: com frestas de podridões
e outras falhas onde o fogo dos archotes ou tochas encontraram combustíveis
para propagar-se. Depois de terminada a "caçada", os escravos procederam
à limpeza habitual, porém não a fizeram com a exigida atenção, nos
pontos referidos e isso, foi a origem da catástrofe que destruiu
o primeiro templo construído no Brasil, sob a invocação da Virgem
Da Conceição!...
Seria pouco mais de dez horas (vinte e duas atualmente), já tinha
batido no sino da matriz o toque de silêncio e poucas pessoas ainda
estavam nas ruas conversando, quando foram surpreendidas pelo toque
de alarme do sino do Convento.
As primeiras "olhadas" foram dirigidas para o mar a procura de algumas
luzes milagrosas, como d'antes acontecido, mas logo foram desviadas
pelos gritos angustiosos que partiam do largo da Matriz-"Fogo no
Convento!... Está pegando fogo!..." Em menos de uma uma hora organiza-se
uma grande procissão rumo ao Convento: de todas as casas saiam correndo
homens, mulheres e crianças, conduzindo potes, latas, panelas todo
o vasilhame de que dispunham para carregar água que tirada das fontes
da Casinha "Itaguira" e de poços particulares, existentes no "caminho
de baixo", outros corriam pelo caminho do "Rabelo" e "Mãe Benta",
em cujas fontes a água era mais abundante, dirigindo-se todos com
as vasilhas cheias pelas ladeiras do convento e no pátio eram entregues
aos destemidos homens que lutavam para salvar do fogo as imagens
e outros objetos de valor do culto religioso. Essa perigosa batalha
e a romaria dos carregadores d'água só findou madrugada, quando
o fogo não achou mais o que destruir do vasto edifício, deixando
para perpertuarem a sua obra as paredes enegrecidas, que resistiram
à fúria do elemento destruidor!. O incêndio atingiu a tais
proporções que as labaredas se elevaram a altura calculada a mais
de cinquenta metros, e o clarão do mesmo foi observado no litoral
até o canto dos Itatins e Itaipú. Contava minha avó e outras pessoas
que tomaram parte nos trabalhos dessa trágica noite, que as imagens
que traziam intactas, salvas do incêndio eram colocadas sobre uma
mesa em frente ao Cruzeiro, e ali, com velas acesas as pessoas que
não podiam prestar socorro pela idade ou por invalidez, erguiam
suas preces, cantando ladainhas e outras orações à Virgem Mãe do
Redentor, implorando a sua proteção aos que lutavam pela salvação
da igreja.
Diversos fatos presenciados nesta noite e no dia seguinte, foram
atribuídos a verdadeiros milagres, destacando-se os seguintes que
julgo serem dignos de nota: O velho escravo Roque, apesar da sua
avançada idade (mais de oitenta anos) foi que ajudou o sargento
Mariano a retirar no nicho, circundado do fogo, a sagrada imagem
de Nossa Senhora e fez questão de conduzí-la sem ajuda de outra
pessoa até embaixo, no cruzeiro, onde a colocou sobre a mesa prostrando-se
em seguida a seus pés, chorando e agradecendo tão elevada graça.
As referidas pessoas que ali se achavam ficaram surpreendidas com
esse ato de grande fé e amor que o velho escravo tinha na sua excelsa
Senhora, em cujas sagradas faces se viam correr suores cristalinos
que orvalhavam a toalha do improvisado altar!... Não tendo ocorrido
um só acidente entre tantas pessoas, que com verdadeiro heroísmo
e intimides enfrentaram a fúria do elemento destruídor, arrancando
nichos e altares, e tudo que era de valor, causou também admiração
no povo em geral o milagroso fato de pela manhã, terem encontrado
todas as fontes e poços que tinham deixado secos à noite, cheios
a transbordar do precioso líquido!...
Fonte:
"Correio do Litoral" de 11/04/1915