Os Zwarg no Brasil

Como Tudo Começou


Nossa história começa em 1887, quando um jovem casal de alemães resolveu tentar a vida no Brasil. Arrojados e decididos, Bruno Emil Zwarg, então com 25 anos, professor, natural de Leipzig, e Barbara Häplin Zwarg, dois anos mais nova, nascida em Mainz Reno, que viriam a ser nossos avós, deixaram seu país para ir de encontro a uma terra estranha onde não conheciam ninguém. Como se isso não bastasse, Barbara, ou Betty, como era carinhosamente chamada pelos íntimos, estava grávida , um estado que provavelmente inspirava cuiados, pois já era sua terceira tentativa de ser mãe. A criança que Betty trazia no ventre, Emilia Guilhermina, nasceu no final daquele ano. Por sorte, os Zwarg já estavam instalados em São Paulo, na rua Conselheiro Nébias, na primeira das diversas moradas que ocupariam e onde nasceriam oito de seus nove filhos.

Minha mãe, a quarta filha dos Zwarg, nasceu em 1896, depois de Carlos Pedro Guilherme e de Hans Ernst, nome rapidamente abrasileirado para Ernesto. O casal hesitou um pouco antes de registrar a nova herdeira. A princípio, pensaram em chamá-la de Brisabela, mas acabaram decidindo que seria Isabel. Seu apelido Bela, descrevia-a perfeitamente: era bela em todos os sentidos.

Depois dela ainda viriam Theodoro e Bruno, gêmeos; Cecília ou Sissi; Valde Mário Arnaldo e, finalmente, Luiza Camem, que todos, inclusive seu próprio pai, só chamavam de Nene.

Betty e Bruno professavam credos diferentes. Ela, católica, ele, protestante, resolveram que batizariam cada filho, alternadamente, em uma das religiões. Como tiveram nove, número ímpar, a caçula, Nene, não foi batizada. À minha mãe, Bela, coube o catolicismo.


Ernesto, avó Betty, avô Bruno,
Emília e Carlos

Bruno, nosso Grosspapa, era uma pessoa especial, não havia quem não gostasse dele. Sua fisionomia era meiga e seus olhos, de um azul muito claro, fitavam as pessoas, descontraídos e semicerrados. Mesmo do ponto de vista de uma menina, era um homem baixo, não devia ter mais de 1,65 metro de altura. Eu percebia que ele sabia aproveitar cada momento e estava bem consigo mesmo e com todos os que o rodeavam. Tinha muito amor para dar, virtude que soube transmitir à maioria dos filhos. E como era generoso! Jovial, alegre, gozador, tinha um ar maroto e parecia levar tudo na brincadeira.

Ele gostava mesmo de uma boa gozação. Recordo-me tão bem de uma de suas brincadeiras preferidas... Depois das refeições, mesa ainda posta, ele colocava um dos netos no colo e fazia-o puxar a toalha para derrubar toda a louça. Para ele era uma farra, e nós, crianças, achávamos a maior graça. Betty, é claro, detestava isso.


Avó Betty com os filhos

Barbara, nossa Grossmama, era mais alta que o marido - pelo menos, essa era a impressão que eu tinha, talvez devido ao seu porte ereto, que manteve inalterado até o fim da vida. Era forte - assim me pareciam todas as mulheres da época - e seus olhos, castanhos como seus cabelos, pareciam desafiar o mundo. Posso dizer que, nela, físico e caráter se fundiam: retos, íntegros, autoritários. Para dizer a verdade, eu tinha um certo medo dela. Séria, enérgica e até severa na minha visão de criança, era quem comandava a família, inclusive financeiramente, pois cabia-lhe a responsabilidade de administrar os honorários do marido.

Não tenho lembranças da casa onde nasci. Para mim, a casa de minha infância foi a da Rua Benta Pereira nº 33, para onde fomos em 1919 ou 20.

Antes de meu avô comprar essa propriedade, sei que os Zwarg se mudaram várais vezes depois de deixarem a Conselheiro Nébias. Todas as moradias que ocuparam, espaçosas, eram consideras de classe média alta, condizentes com a posição de professor.

A família instalou-se primeiro na Rua Bandeirantes, no bairro da Luz, num sobrado grande. Depois, foi morar na Rua Afonso Pena, no mesmo bairro. Era uma casa térrea com um terreno nos fundos, e muitas jabuticabeiras. Minha mãe gostava de lembrar que Betty fazia o que chamavam de Mus, geléia em alemão, uma inovação, pois, para ela que vinha da Europa, jabuticabas eram desconhecidas. Em seguida, foram para a Rua Voluntários da Pátria, onde nasci.

A casa da Benta Pereira era a primeira propriedade adquirida por meu avô e foi ali que ele e Betty terminaram sua vida. Quando a família se mudou para lá, todos os filhos mais velhos - Emilia, Carlos, Ernesto e Bela - estavam casados, menos Bruno Filho, que continuava vivendo com os pais.

Na década de 20, o bairro de Santana era ainda um lugar ermo e pouco habitado. Não existiam feiras livres, mas chácaras de verdureiros, que revendiam seus produtos na cidade. No bairro, quase toda moradia tinha sua horta e seu pomar, que supriam as famílias de frutas e verduras frescas. O leite era adquirido num estábulo, próximo às chácaras, onde os proprietários mantinham umas poucas cabeças de gado. Eventualmente recorríamos a um dos dois ou três armazéns, simples vendinhas de no máximo dois cômodos, para comprar secos e molhados, como farinhas, grãos, sabão. Não muito longe de nossa casa, num pequeno largo, havia uma farmácia e uma grande padaria, explorada por italianos, que faziam pães de toda qualidade, deliciosos e cheirosos. Tinha hora certa para sair do forno, e nós ficávamos aguardando a fornada para adquirí-los ainda bem quentinhos.

Com o passar do tempo, o bairro se transformou. O comércio ampliou-se, novas residências foram sendo construídas e nossa casa também foi reformada. Quando Bruno a comprou, a casa da Benta Pereira era pequena e simples. O valor do imóvel estava mais no terreno, vasto, que ocupava toda uma esquina, com a mesma metragem dando para a Rua Damiana da Cunha, onde existia um outro imóvel menor, no fundo. Lembro da cerca que rodeava o terreno, toda de ripas de madeira pintadas de preto, dispostas como meias-luas e separadas a cada metro e meio mais ou menos por bolas também de madeira, só que pintadas de branco, obra de um artista excêntrico como Grosspapa.

Perto da residência, havia um pomar com uma ou duas árvores de cada espécie, que pareciam não estranhar clima e solo tropicais. Ao lado de limoeiros e laranjeiras, ameixeiras e parreiras, havia até dois pés de nêspera, um de framboesa e outro de amora. Ao centro, um pé de pequenas tangerinas, conhecidas como "mexericas do Rio", que ficava vergado de frutas amarelas como ouro, nos lembrava que estávamos no Brasil.

Bruno foi melhorando a moradia da família, mas resolveu começar pelo terreno lateral, que ficava um pouco abaixo do nível da casa, onde plantou muitas variedades de flores. Ir até o jardim era uma deliciosa aventura. Para se chegar lá, descia-se uma pequena escada de tijolos, de uns cinco degraus, coberta por um túnel de ripas pintadas de branco. Com o tempo, parreiras carregadas de uvas brancas e pretas, cujos cachos ficavam expostos, lindamente dependurados, passaram a cobrir as ripas, para a alegria de Grosspapa. Ao lado, estendia-se um vasto tapete de grama verde-claro, delimitado por arbustos de de um tom mais escuro, podados em linha reta - tão reta, que me lembravam uma caixa. Duas árvores altas de pêra-d'água se destacavam. Atrás, perto da casinha menor, outro aparador de uvas, mais largo que o primeiro, parecia um caramanchão. Lembro que, bem no canto do terreno, na esquina, havia uma enorme e rara árvore de Natal, diferente das que são usualmente encontradas. Quando seca, exalava um aroma característico, delicioso, que guardei na memória e até hoje me remete à comemorações natalinas.

O jardim era ornamentado por canteiros e arbustos de várias espécies de plantas e flores. Havia hortênsias, margaridas, dálias e lírios. O canteiro mais admirado era o das rosas de diversas espécies, tamanhos e cores. Naquele tempo, Bruno, naturalista, fazia experiência e tentava mudar a tonalidade das flores. Aplicava misteriosas injeções... Bem no centro, ao lado do muro que dava para a rua, havia uma mesa redonda, não muito grande, com dois bancos fixos, um diante do outro, que haviam sido confeccionados pelo nosso avô. O toque diferente daquele jardim florido eram os pés bem altos de mamão, do tipo Formosa, plantados ao lado da mesa. O jardim do avô Bruno era admirado por todos. Vinha até gente de fora para apreciar aquela beleza.

O terreno que separava as duas casas era grande. No canto superior, o sanitário e um chuveiro, o primeiro de serventia das casas, que se resumia a um balde de alumínio em forma de cilindro, com uma tampa de chuveiro soldada na parte de baixo, e funcionava por meio de duas correntes com pingentes de madeira. A água corria puxando-se uma delas, e o fluxo era interrompido puxando-se a outra. É claro que, para ter um bom banho, era preciso encher manualmente o cilindro de água - usávamos uma escada para esse fim. Para um banho quente, a água era aquecida no fogão de lenha, em casa, para depois ser despejada no cilindro.

Essas nao eram as únicas dificuldades. Além de tudo, a água era tirada de um poço que ficava no meio das duas casas. Um balde, amarrado a uma corda, subia pesado, quando se rodava a manivela. Todas essas manobras foram resolvidas tempos depois com a reforma do poço: o balde foi substituído por uma bomba e a abertura fechada com uma laje de cimento. Anos mais tarde tivemos água encanada.

No início, a casa propriamente dita nem tinha forro, e as frestas entre as telhas permitiam entrever as estrelas. Para nós, crianças, era um deslumbramento. Recordo que, como as paredes internas não eram muito altas, conseguíamos atirar nossos travesseiros de um quarto para outro, brincadeira sempre iniciada pelo Grosspapa, que, a sua maneira, nos avisava que já tinha amanhecido e era hora de acordar. O chão era de tijolos de barro, lisos, não sei se gastos pelo uso ou por alguma raspagem. Como era sempre lavado com água e sabão, absorvia a umidade e transmitia muito frescor. Era uma sensação agradável, que nunca esqueci. Luz elétrica também não existia. Usávamos lampiões de querosene, que tinhámos em grande quantidade. Na sala de visitas, um maior e mais bonito...

Lentamente, a casa também foi sendo reformada. E o velho fogão a lenha, construído de tijolos, foi substituído por um fogão de ferro de seis bocas de "marca" , bastante procurado pelas famílias de melhores condições financeiras. Era guarnecido internamente por serpentinas que aqueciam a água para uso da pia da cozinha e em um novo banheiro que havia sido construído. Era um luxo. Já que não era mais preciso usar os feixes de lenha, que foram trocados por caibros de madeira, encomendados, transportados e remetidos em carroças pela serraria.

Depois da reforma do poço e da troca do fogão, uma varanda foi construída em toda a largura da casa. Era fechada por um muro baixo, guarnecido de jardineiras de plantas muito verdes, e podia ser isolada graças às cortinas japonesas de palha, que subiam e desciam puxadas por cordéis. Pouco depois, as paredes internas da casa foram levantadas e o telhado foi trocado. E, como não podia deixar de ser, numa casa tão confortável para os padrões da época, fez-se um forro. O chão foi assoalhado e escurecido.

No bairro todos sabiam que aquela casa, diferente de todas as demais, era a casa dos estrangeiros. De longe, chamavam a atenção a cerca com suas bolas brancas, o belo jardim e o caramanchão de madeira pintada de azul, forrado de sapé e em dois planos. Os costumes dos alemães escandalizaram. Corria na vizinhança o boato de que o professor tinha um quarto cheio de retratos de gente nua... Na verdade, eram apenas os quadros de modelos gregos semidespidos que decoravam o plano superior do caramanchão, ao lado da figura de animais como cavalos e leões. Situada mais ou menos no nível térreo da casa, era uma inocente sala de leitura ou de visitas, onde, durante o verão, tomava-se o chá ou café da tarde ou se jogava cartas. Era um cômodo quadrado, assoalhado, com uma porta grande de entrada e, nas paredes laterais, janelas enfeitadas por cortinas curtas, presas às vidraças, e guarnecidas de persianas verdes. O plano inferior do caramanchão, ao nível do jardim, era usado pelo professor Bruno como sua oficina de trabalho.

A pintura da casa era inacreditável para os padrões locais da época. Por fora, não se diferenciava muito das demais cadas do bairro, mas por dentro era de uma excentricidade que só se justificava por um espírito artístico como o do Bruno. A sala de visitas, acesso obrigatório a qualquer pessoa que procurasse os Zwarg, era pintada de vermelho. Mas não era só isso. As paredes eram pintadas em faixas verticais de uns 25 centímetros de largura, em dois tons de vermelho, um mais forte que o outro, e cincurdadas na parte superior por uma guirlanda horizontal de anjinhos barrocos pintados de preto, acompanhados de folhagens também em preto. A sala de jantar, que não fugia ao gosto do artista, também era pintada com faixas verticais em dois tons de verde - suaves, dessa vez! - rematadas por uma guirlanda de maçãs, uvas e ameixas coloridas.

Bruno era professor de desenho e modelagem na Escola Normal da Praça, sitiada à Praça da República, e no Liceu de Belas Artes, na Avenida Tiradentes. Na primeira, lecionou trinta e um anos consecutivos, até sua aposentadoria. Dava aulas de manhã, e durante o resto do dia deleitava-se fazendo trabalhos em argamassa ou esculpindo em madeira. Eram objetos excêntricos - cantoneiras, mulduras, cabos de guarda-chuvas em forma de cabeças de pássaros e até de caveira -, exibidos com orgulho pela família. Bruno era um verdadeiro artista, comentava-se. Ele não admitia vender suas obras, tanto é que eu mesma ainda tenho algumas delas em casa. Gosto de olhá-las e acariciá-las de vez em quando. Entre todos os seus trabalhos, o que mais se destacou fou um jogo de sala. A mesa, não muito grande, tinha entalhado na tampa o desenho de um jogo de xadrez, que também podia ser usado para o jogo de damas. Completavam o conjunto quatro cadeiras com o espaldar em alto-relevo, representando as fisionomias de seus parceiros, em geral sócios do Deutscher Turnverein, clube frequentado pela colônia alemã. Eram semblantes diferentes, uns sérios e outros alegres. Uma dessas figuras segurava o queixo, pensativa; outra exibia um cavanhaque; outra usava óculos. E, bem em cima do espaldar das cadeiras, estavam esculpidos os naipes do jogo de baralho. O clube alemão era importante na vida de meu avô: ele fora um dos seus fundadores e, durante um tempo, seu presidente, posto que seu filho Ernesto também assumiria anos mais tarde.


Ernesto, Bruno, Carlos, avó Betty, avô Bruno

Independentemente de sua atividade de professor e artista, Bruno era um cientista, um naturalista. Escrevia diariamente uma crônica para o Deutsch Zeitung, jornal alemão, onde costumava alertar para as consequências nefastas do desmatamento de florestas. Dizia que as árvores também serviam para reter a água das chuvas, e que sem elas haveria desmoronamento das terras dos morros. Ele tinha razão. Haja vista a mudança do clima da Cidade de São Paulo, antigamente conhecida como "a terra da garoa" , à qual, inclusive, chegou a ser dedicada uma modinha popular. Bruno defendia o tratamento das doenças por meio de plantas mediciais e de água. Como lembro bem! Era só alguém ter febre em casa e lá vinha o avô Bruno aplicar as compressas de água, faixas molhadas enroladas nos pulsos, nas barrigas das pernas, no pescoço e no ventre. Assim que secavam, eram trocadas sucessivas vezes até que a temperatura do paciente cedesse. Se a febre persistisse, na falta de banheira, luxo que não tínhamos em casa, o doente era colocado numa bacia de água morna e recebia por trás, de chofre, um copo de água fria. O choque térmico dava resultado. Não houve neto que não tivesse passado por esse tratamento...

Bruno era realmente uma pessoa diferente. Minha mãe, Bela, contou-me que, quando devia ter uns dezessete anos, certo dia nosso avô chegou em casa com duas passagens para a Alemanha. Era uma surpresa e tanto. Como já fazia mais de vinte anos que nossos avós não viam os parentes, todos imaginaram que o casal iria tirar uma férias. Estavam enganados. As passagens eram para Betty e Sissi, irmã mais nova de mamãe, que tinha treze anos e estudava violoncelo. Bruno sempre quis que todos os filhos estudassem música e, de certa maneira, foi bem-sucedido. Ernesto tocava flauta, Carlos e Bela, bandolim e Theodoro, violino. Mas quem mais se destacava era Sissi, o que o levou a sonhar com uma carreira para a filha. Sem consultar ninguém, resolveu mandá-la para a Alemanha, onde moraria com uma irmã de Betty. Sua mãe a acompanharia e voltaria pouco depois ao Brasil. Assim fez e assim ficou resolvido.

Pouco depois da volta de Betty, eclodiria na Europa a Primeira Guerra. Por causa do conflito os Zwarg não puderam ter notícias da filha por muito tempo. Aqui a situação da colônia alemã era delicada. O Brasil rompera relações diplomáticas e depois declarara formalmente guerra à Alemanha no final de 1917. O povo brasileiro mostrava seu desagrado por meio de palavras e atos contra os imigrantes alemães ou até contra famílias de outras nacionalidades. Minha mãe contava que os descontentes atacavam os estrangeiros jogando barro nas residências, pixando os muros, quebrando vidraças. Não bastando, entravam nos clubes e destruíam o que viam pela frente. Já naquela época existiam quatro clubes alemães: o Deutscher Turnverein, o Turnenschaft, o Esporte Clube Germânia e o Clube Philarmônico Lira, que se dedicava à música e onde se apresentavam corais. Quando entraram no clube que nossa família frequentava, eles recuaram ao avistar um busto de Rui Barbosa no saguão. Por sorte nosssa, pensaram: "Uma instituição que honra um grande brasileiro não pode ser destruída". Mas, o que eles não sabiam é que se tratava de uma homenagem a um sócio-fundador, por demais parecido com Rui Barbosa.

Sissi só conseguiu voltar ao Brasil alguns anos após o término da guerra, quando já tinha 21 anos. Minha mãe nunca soube explicar bem - por quê, mas o fato é que Sissi não pode continuar morando com a tia e acabou ficando por conta da própria sorte. Por um tempo, foi obrigada a abandonar seus estudos de música para trabalhar numa fábrica de munição, mas como era uma Zwarg, uma lutadora, aos poucos pode voltar ao violoncelo. Teve a sorte de conhecer os Kässel - o casal Paul e Frida, que a hospedaram. Tinham uma filha, Maja, também musicista, e foi o amor pela música que uniu as duas jovens. Assim, Sissi viveu com os Kässel até o final da guerra e com eles voltou ao Brasil, sem lembrar uma única palavra de português, mas uma exímia concertista. O nome de Cecília Zwarg tornou-se conhecido e admirado nos meios artísticos.

Um fato muito comentado na época foi a vinda de grande regente italiano a São Paulo, para reger a Orquestra Sinfônica Municipal. Uma celebridade mundialmente conhecida, o maestro era temperamental. Naquele tempo, poucas mulheres faziam parte de uma sinfônica e quando ele notou a figurinha de Cecília bem na frente da orquestra, como primeiro-violoncelo, não escondeu seu desagrado. No entanto, iniciado o primeiro ensaio, suas reservas caíram por terra. Conquistado pelo talento de Cecília, não perdeu a oportunidade de demonstrar sua admiração e de cumprimentá-la pela sua execução.


Sissi

Orgulhoso desse sucesso, Bruno finalmente se sentia recompensado por todo o sofrimento por que passara durante a ausência da filha. Bela conta que, aflito pela falta de notícias, nosso avô ficou com os cabelos completamente brancos rapidamente. Bruno era o melhor avô do mundo, adorado pelos netos e por todos que tinham contato com ele. Das várias brincadeiras que inventava, uma delas, que fazia diariamente, era convidar-nos para um "passeio a Mato Grosso". "Mato Grosso" era o nome dado por ele ao morro onde se situava a casa da família. Ele se referia a Mato Grosso porque um de seus filhos gêmeos, Theodoro, que havia saído de casa aos quatorze anos, dizia-se, estava vivendo naquela Estado. Acho que era uma maneira de nosso avô disfarçar a mágoa e a saudade do filho ausente. Para nós, os netos - Elza, Erna e Hilda, filhas de tia Emília, e Oswaldo e Antonio Bruno, filhos do tio Ernesto, o passeio era sempre uma alegria. Lá em cima do morro, era um vasto campo onde corríamos, dávamos cambalhotas, escorregávamos pelas ladeiras. Tudo era permitido. Havia muito mato, onde brotavam amoras que colhíamos e levávamos para casa.

Em casa a folia continuava. Nos dias de chuva, tínhamos permissão para tirar a roupa e correr pelo quintal, inteiramente nús, até ficarmos ensopados e esgotados. Antes de sermos intimados a ir dormir, o avô Bruno brincava de cavalhinho com um por um. Cruzando uma perna sobre a outra, balançava o neto sentado no pé. Ato contínuo, deitava-se no chão para que nós déssemos cambalhotas sobre ele.

Aguardávamos ansiosos que o Grosspapa voltasse para casa. Por volta das 13 horas, ele apontava lá longe, num morro distante onde ficava o quartel militar. Ali havia uma estação de trem, do trenzinho que vinha da Cantareira e se desviava antes do quartel. Naquele tempo, o bairro de Santana não era bem servido de condução, que só chegava até a rua Voluntários da Pátria. Daí até a nossa casa, na rua Benta Pereira, um adulto levava quase uma hora a pé.

Reconhecíamos imediatamente aquela figura inconfundível, girando sua bengalinha de um modo todo característico, como um senhor professor de uma das escolas públicas mais importantes do país, onde se formaram diversas personalidades. Vestia sempre um terno impecável, cinza-chumbo, com colete da mesmo cor, camisa branca de colarinho duro com as pontas viradas e gravata branca. Completava o traje um relógio de ouro, que levava no bolso do colete, preso ao cinto por uma grossa corrente de ouro. Para finalizar, botinas pretas, a bengalinha e o inseparável chapéu-coco. Era hábito naquele tempo.


Avó Betty, avô Bruno

Nós , os netos, ficávamos à espreita, observando-o com um binóculo. Chegava um momento em que ele desaparecia de nossa vista, na descida do morro, para logo mais surgir de novo. Era nessa hora que saíamos em disparada ao seu encontro, para ver quem chegava primeiro. A alegria de abraçá-lo primeiro se misturava à de ganhar o prêmio: um cilindro de açúcar de listas multicores e o direito de voltar de cavalinho nos seus ombros. Os retardatários não ficavam sem recompensa. Eram contemplados com balas e estimulados a se superarem na próxima vez.

Esse hábito de andar de "cavalinho" em seus ombros era comum. Toda vez que Betty nos chamava para almoçar ou tomar o café da tarde, era o bastante para tentarmos ganhar uma volta de "cavalinho" pelo jardim. Naquela família de alemães, o chá ou café da tarde eram mais apreciados que o almoço. Schwartz und Weiss Brot, Leber und Mett Wurst, Honig und Mus, que traduzindo significam significam pão preto e branco, linguiça de patê de presunto e patê de fígado, mel e geléias eram parte do cardápio. Betty fazia bolos, de receitas alemãs, como o saboroso Stollen, recheado de uvas passas, amêndoas, cidra, etc. Para as ocasiões especiais, como o Natal, Betty preparava biscoitos no formato de bonequinhos de Papai Noel, palhaços, estrelas, que, juntamente com velinhas multicores acesas à noite, enfeitavam a árvore. Bruno, com seu gênio alegre, desempenhava o papel do bom velhinho, entrando em cena vestido de Papai Noel.


Avô Bruno

Os aniversários também eram datas importantes. Eram dias especiais, inteiramente dedicados ao aniversariante, que tinha o direito de se sentir o centro das atenções e, primeiro privilégio, ser o último a se levantar da cama. Isso porque a festa começava nas primeiras horas do dia, e era preciso dar tempo para que se preparasse a mesa do café, toda enfeitada. Festejar o aniversário no café da manhã foi um hábito que se estendeu por muitos anos, e mesmo após a morte dos patriarcas não desapareceu entre nós, apesar dos horários de estudo e trabalho. Posso afirmar com certeza que, embora simples e limitada à família, essa comemoração era muito gratificante.

Em todas as festas, fosse Natal ou qualquer outra data, Bruno sempre comprava um barril de chope. Antes de ser aberto, nosso avô cobria o barril com um lençol branco e o carregava, auxiliado por amigos, pelas ruas da vizinhança, entoando cânticos populares e convidando os conhecidos para a degustação. Era uma verdadeira cerimônia!

De todos os costumes alimentares dos Zwarg, um ficou marcado para sempre na minha memória. Era o inesquecível e odiado menu das quintas-feiras: bolinhos de araruta, do tamanho de uma laranja, acompanhados de ameixa preta ou pera em calda, e, no final, uma salada de alface doce, esta última, servida todos os dias nos finais das refeições. Para mim, era um suplício.

Nos outros dias vinham à mesa variados pratos da cozinha alemã: Sauerkraut mit Viena Würstchen, Bratwurst, Kartoffleln Gläce, Sauerotkohl, Eisbein, Falscherhase, Goulasch mit Knödel ou Spetzel. Traduzindo: chucrute com salsicha, linguiça branca de vitela, bolos de batata, repolho roxo azedo, joelho de porco, falso assado de lebre, picadinho de carne com nozinhos de massa de nhoque. Parece que ouço Barbara dizer todos esses nomes...Aliás, à mesa, Grossmama nunca admitia que se falasse em portugues. Devíamos nos dirigir a ela em alemão para sermos servidos.


Sissi, avô Bruno, sra. Ramos de Azevedo, sr. Ramos, avó Betty, elza e Erna
A casa de nossos avós vivia sempre cheia de visitas. Uma das mais esperadas era a de tia Emilia, irmã mais velha de minha mãe. Cabelos escuros, bastos, espessos, olhos de um azul profundo e cinturinha de vespa, Emilia, dizem, fora uma moça bonita e meiga, sempre simpática aos que a rodeavam. No fundo, era uma leoa, uma guerreira e lutou para impor-se. Aos dezoito anos, contra a vontade dos pais, bateu o pé e foi trabalhar como enfermeira no Hospital do Juqueri, destinado a tratamento de doentes mentais. Mais tarde, foi massagista, fisioterapeuta e conselheira de problemas familiares e de saúde. Era muito requisitada e admirada, não só pelos médicos como também pela clientela, que incluía famílias da alta sociedade paulistana.

Emilia casou-se com Max Gruschka, um homem forte, alto e loiro, de olhos azuis. Meu tio era uma bela figura de homem, dono de um vasto bigode. Os Gruschka tinham uma oficina onde se consertava de tudo, aparelhos elétricos, bicicletas, tudo que precisasse de reparos, onde também residiam. Era uma enorme loja na rua Martim Francisco. Havia um telefone antigo, acionado por uma manivela, preso à parede.

Erna, a filha do meio, falaceu aos treze, vítima de um trágico acidente em casa.

Hilda, a terceira filha, que na verdade se chamava Brunhilde, foi uma criança de uma beleza angelical. Dona de um narizinho afilado e olhos de um azul profundo, era sempre o menino Jesus ou o anjo nas festas do colégio e procissões. Com seus cabelos loiros, tom champanha, cortados à altura dos ombros, era a própria figura do Cristo.

Meu companheiro inseparável de infância foi Oswaldo, filho mais velho de tio Ernesto, porque éramos quase da mesma idade e morávamos vizinhos. Com menos de dois anos, fora acometido de paralisia infantil e meningite. Apesar de todos os recursos tentados para sua cura, a doença deixou marcas e, mesmo depois da cirurgia a que foi submetido um pouco mais velho, ele ficou com dificuldade de locomoção. Oswaldo era inteligente e amoroso. Como a mãe o tratava como um menino normal e não fazia diferença entre ele e os irmãos, tornou-se um garoto alegre, bondoso, simpático, cheio de esperança no futuro. Desde pequeno gostava de desenhar, o que fazia admiravelmente bem, principalmente automóveis. Apesar de suas limitações físicas, nunca se notou nele o menor vestígio de tristeza. Tenho certeza de que essa força e a vontade de viver ele herdou da mãe, tia Céa.


Emília, avô Bruno, avó Betty e Bela

Tio Ernesto era o terceito filho. Alto, de compleição forte, era um dos mais bonitos e tranquilos da família, um intelectual. Casou-se com Céa, diminutivo de Cymodocea, descendente de uma tradicional familia de fazendeiros de café e gado, os Nobre da Rocha, que recebera uma educação esmerada. Tiveram seis filhos, duas mulheres e quatro homens. A mais velha, Mercedes, morreu muito pequena, não sei de quê. A segunda menina, Emília, em homenagem a sua madrinha, tia Emília, falacera aos dois anos, acometida de uma doença infantil. Dos homens, o mais velho era Oswaldo, a seguir vieram Antonio Bruno, Ernesto Junior e, por último, Ascendino.

Tio Ernesto trabalhava na Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, da qual chegou a ser presidente. Lembro dele sempre trajado elegantemente. Depois que se aposentou, transferiu-se com a família para Itanhaém, onde, segundo meu primo Tino, montou a primeira gráfica da região, que imprimia o Jornal de Itanhaém e depois o Correio do Litoral. Tio Ernesto usava grande parte de seu tempo lendo jornais. Além da gráfica, tio Ernesto e tia Céa instalaram uma concessionária da Companhia Telefônica, que operavam pessoalmente, na sala da frente de sua residência, e faziam eles mesmos as vezes de telefonistas.

Tia Céa era muito dedicada ao marido, com quem tinha muitas afinidades. Ficavam horas e horas conversando. Ela amava a política e era de um patriotismo difícil de se encontrar em mulheres de seu tempo, embora de uma meiguice que transparecia até em fotografias. Lembro dos dois ao redor da mesa, diante dos jornais abertos, debatendo as notícias, ele fumando e ela sempre atenta em servi-lhe um cafezinho. Gostava de fazer versos, que assinava com o pseudônimo de "Pedrinha". Um de seus poemas, "Viagem Maravilhosa", foi gravado em azulejos na sala de espera da companhia de ônibus de Itanhaém. Preocupada com o intelecto, Céa era uma mulher sem vaidade. Convivi muito com ela e não me recordo de ter visto jamais algum sinal de pintura nos lábios ou rosto. A primeira vez que a vi mais arrumada foi na tarde de autógrafos por ocasião do lançamento de um livro de poesias, de sua autoria, num salão da rua São Luiz, em São Paulo.

Céa era apaixonada por política. Discutia e se inflamava quando debatia o assunto, principalmente com meu pai, seu cunhado e compadre, e também com Constantino, um vizinho nosso. Os três nunca chegavam a um acordo e davam a impressão de que iam se comer. Eu, que era pequena, adorava essas discussões e ficava embevecida com os argumentos de papai.


Ernesto, Céa, Oswaldo, Antonio Bruno, Ernesto Júnior e Ascendino (Tino)

No calor da luta, o povo se preparava para defesa da cidade. Comboios de soldados eram enviados para as cidades vizinhas da capital. Foi um levante total. As mulheres faziam a sua parte. Organizadas em grupos, saíam às ruas carregando as quatro pontas de uma bandeira paulista, na qual a população atirava valores e jóias, principalmente alianças que eram trocadas por outras de metal branco, nas quais estava gravado o sílbolo de São Paulo. Era a campanha "Ouro por São Paulo".

Tia Céa, naturalmente, não podia ficar alheia à luta. Conseguiu convencer tio Ernesto a alistar-se e até a doar um caminhão para a causa constitucionalista. Mas não parou por aí. Deixaram os filhos aos cuidados de meus pais e seguiram os dois para Guararema, onde se juntaram aos revolucionários e tia Céa cozinhava para a tropa.

Cedendo à insistência e aos argumentos de minha tia, até meu pai chegou a envergar o uniforme de soldado revolucionário, imitando a maioria dos homens da cidade, embora fosse contra os revoltosos e a favor da situação, mas não se manteve fiel à causa, na qual no íntimo não acreditava. Juntou-se a um grupo que professava as mesmas idéias e, reunidos em casa de meu tio José Osório, entraram em contato com os legalistas através do rádio, informando-lhes a posição dos revoltosos paulistas. Creio que minha tia Céa nunca soube da traição do cunhado.

Era uma mulher de inúmeras qualidades, mas, não gostava de perder tempo com detalhes cansativos e repetitivos que fazem parte da rotina diária da moradia da família. Guardo na lembrança a figura da tia Céa às voltas com os afazeres domésticos e o cuidado dos filhos. Para ajudar, eu era incumbida de segurar Tino, ainda bebê, no colo. Enquanto fazia os serviços da casa, ela ia nos entretendo com histórias de romances. Um deles era o Conde de Monte Cristo, uma linda história de amor que me deixava extasiada. Floreava tanto que, anos mais tarde, quando tive a oportunidade de lê-lo, fiquei desapontada. As histórias que ela nos contava eram muito mais bonitas e ricas em detalhes.

Apesar de sonhadora, Céa era uma mulher corajosa que não costumava revoltar-se ou blasfemar contra o destino. Depois de perder duas filhas, enfrentou problemas de saúde em família. Quando, aos nove anos, Antonio Bruno começou a se queixar da visão e o oftalmologista sentenciou que o menino deveria se abster da leitura e de tudo que forçasse a vista para não correr o risco de perdê-la completamente, decidiu que o filho abandonaria os estudos e tudo o mais que pudesse prejudicar sua visão. Sua primeira providência foi comprar-lhe um par de óculos e uma sanfona, para que ele pudesse aprender música, no que o menino se saiu muito bem, já que tinha um talento musical inato. Antonio Bruno não perdeu a visão, mas tornou-se um virtuose e compôs lindas canções, sendo que uma delas alcançou grande sucesso. Estou falando de Que Beijinho Doce. Quem não conheçe? Da sanfona, ele passou para o acordeon, daí para o piano, e acabou dominando todo e qualquer instrumento.

O ano de 1926 trouxe uma série de acontecimentos marcantes para a família Zwarg. Primeiro, foi a volta de nosso tio Theo. Aventureiro, tinha fugido de casa aos catorze anos, retornando aos 28, já casado. Voltou como partiu, inesperadamente, depois de anos sem qualquer sinal de vida.

Foi uma noite em que o casal Zwarg já estava recolhido. Bateram à porta principal da casa de Santana. Meu avô Bruno levantou-se e, preocupado, perguntou:

- Quem é?

- É Theo, seu filho - respondeu uma voz. Pode-se imaginar a surpresa de meus avós, e, naturalmente, a alegria com a volta do filho pródigo. Pouco depois, ele retornaria a Campo Grande para buscar a esposa, Almachia, uma moça muito simpática, tratada pelo apelido de Passica, para instalar-se definitivamente em São Paulo. Foram morar na casa que ficava no fundo do nosso terreno, e lá tiveram seus quatro filhos: Selassié, Agda, Ezequiel e Ismael.

Pela primeira vez, em muitos anos, a família estava reunida: Sissi conseguiu voltar da Alemanha e até Carlos, talvez o mais aventureiro de todos os Zwarg, estava assentado.

Carlos saíra de casa ainda rapazinho e não dera mais notícias. Bruno e Bárbara viviam preocupados até que, por uma incrível casualidade, ao folhearem uma revista, reconheceram o filho numa foto da construção de uma ponte no Peru. Ele havia passado longo tempo navegando pelo mundo num barco a vela e, dizem até, chegara ao longínquo Japão! Eu nunca soube muita coisa sobre suas aventuras, nem quantos anos esteve fora, só sei que, em família, comentavam: "Quando Carlos voltou, era um homem feito". De suas viagens, sei que ele guardara pelo menos uma coisa: uma maneira de dançar típica dos marinheiros franceses. Era exímio dançarino, muito requisitado pelas moças, que apreciavam seu gênio alegre.

Ao voltar, trabalhou durante muitos anos na Casa São Nicolau, na Praça Patriarca, uma loja conceituada que funciona até hoje no mesmo local, onde, de empregado, passou a sócio. Era ele quem idealizava e construía vários dos artigos e brinquedos que vendiam. Criou um dos mais bonitos e atraentes enfeites de Natal da cidade: uma figura móvel de Papai Noel em seu trenó, instalado acima da vitrines. Carlos também construiu várias caravelas em miniatura, um trabalho artístico apreciado como ornamento interno das residências, e fazia figuras em trajes típicos. Era mesmo filho de Bruno...

A alegria de ter a família toda reunida não durou muito. Pouco depois da volta de Theo, meu avô Bruno ficou seriamente doente. Sofria da bexiga ou dos rins, não sei bem ao certo. Ele, que continuava um naturalista convicto, contrário aos tratamentos tradicionais, foi operado na Santa Casa, morrendo dias depois.

Sinto que minha primeira infância, que revejo muitas vezes naquele cenário da Benta Pereira, por onde passaram todos esses personagens, terminou aos oito anos, quando meu avê Bruno faleceu.

Com minha avó Barbara, convivi até as vésperas de meu casamento. Morreu em casa, sofrendo muito de um mal que a consumia durante anos, cálculos na vesícula. Estava assistida pela minha mãe. Na missa de sétimo dia que mandaram rezar pela sua alma, Sissi tocou um trecho de O Lago dos Cisnes, de Tchaikóvski, ao violoncelo.

Lembro-me dela sentada na cadeira de balanço, muito gorda, de peitos grandes. Eu deitava com a cabeça em seu colo e ela me abraçava. Era tão gostoso... Betty era carihosa, sim. À noite, quando rezo, sinto-me como se estivesse em seus braços. Com o passar dos anos, aprendi a entendê-la melhor: não era pouco amorosa ou por demais severa comigo. Simplesmente, era diferente do meu avô.

De casa até a escola o trajeto era de 45 minutos. Eu e Ayrton tomávamos o bonde elérico. O cobrador circulava pelo estribo para cobrar 200 réis da passagem, uma moeda grande de níquel, e em seguida puxava uma alça de couro para registrar o pagamento num relógio. Na frente ia o condutor, batendo com o pé num botão que marcava a passagem do bonde com um "dém, belelém dém, dém". Era o máximo.

Ayrton se apeava na Avenida Tiradentes eu seguia até o ponto final, na Praça do Correio, para chegar a pé até a Praça João mendes. Na verdade, isso durou pouco tempo, pois fui trasnferida para outra escola na Praça da Sé, denominda Faculdade D. Pedro II.


Nene e Kurt

 

Das filhas dos Zwarg, Nene foi a mais bonita e alegre. Praticava ginástica no Clube Alemão e dançava tango, charleston e foxtrot como ninguém. Havia sido noiva de Walter, filho dos Ulbrich, amigos que vieram da Alemanha com meus avós, mas acabou casando-se com Kurt Rittweger. Walter fora tentar a vida nos Estados Unidos, de onde pretendia voltar para casar, mas, enquanto o noivo estava fora, Nene conheceu seu príncipe encantado, recém-chegado da Alemanha, que, em matéria de beleza, não ficava devendo nada a ela. Era alto, de cabelos escuros e lisos penteados para trás, uma pele clara e faces rosadas. Foi amor à primeira vista, tanto que logo resolveram se casar.

Assim como tia Nene, eu também sonhava com um príncipe. E quando conheci Paolo, senti que o tinha encontrado.

 

Uma semana antes de completarmos seis meses de namoro, Paolo chegou ao banco me contando que a Philips, empresa onde ele trabalhava como gerente, o havia transferido para o Recife. Era uma grande oportunidade profissional, que ele não queria perder. Mal tive tempo de responder, porque ele me intimou:-Casamos imediatamente.

Apaixonado como estávamos, não pensamos nas dificuldades que iríamos encontrar. Em primeiro lugar, éramos menores de idade e precisávamos do consentimento de nossos pais. Nossa primeira providência foi escrever uma carta a meu pai, que na época estava no Rio de Janeiro, solicitando sua volta. Depois de várias cartas sem resposta, e com receio de que ele não chegasse a tempo, preparamos um documento em que constava que, estando meu pai impossibilitado de escrever devido a um acidente, a autorização paterna estava sendo substituída pela de José Osório, seu cunhado e pai de criação. O pai do noivo também não estava em São Paulo. Luigi Rossi havia viajado a negócios para a Itália, onde pretendia permanecer seis meses. Felizmente, era previdente e, antes de embarcar deixara uma autorização para um eventual matrimônio. Percebe-se que por parte de Paolo o casamento já estava em cogitação, mas, para mim, era uma surpresa.

 


Paolo e Beatriz

Tia Impéria, esposa de Valde, uma grande modista, confeccionou meu vestido de noiva, enquanto parentes e vizinhos ajudaram às pressas a completar meu enxoval. E foi assim que, num turbilhão de preparativos, chegou o grande dia: 1º de abril de 1939.

Ás 10 horas, eu já estva pronta para o civil, de vestido azul-marinho todo pregueado, salto alto sete e meio, chapéu azul, luvas, quando entra o senhor meu pai, de cara fechada. Chegou dizendo: "Quem deu permissão para a senhora se casar?" Não se atreveu a continuar, pois percebeu que àquela altura não havia mais o que dizer. Fomos para o cartório, papai assinou o termo de responsabilidade e tio Osório foi apenas testemunha. Como meu sobrenome era Pacheco de toledo, o funcionário do cartório disse que eu não podia ficar com tantos nomes. Pedi a opinião de papai, que irritado, não quis se manifestar. Escolhi Beatriz Pacheco Rossi.

Terminada a cerimônia, Paolo foi almoçar com sua família e eu voltei com a minha para nossa casa, onde devorei um chucrute com salsicha. Recordo-me do cardápio porque mamãe me perguntara o que eu tinha vontade de comer em meu último dia de solteira e este fora o pedido.

O casamento religioso estava marcado para as 16 horas. quando cheguei, percebi a igreja repleta de amigos e parentes. Foi uma emoção indescritível, e ainda hoje, ao rever meu passado, sei que essa foi a maior alegria de minha vida. Após a cerimônia, houve uma pequena celebração em casa, só para os mais íntimos, pois estávamos de luto pela morte de minha avó.

Fomos pernoitar no suntuoso Hotel São Bento, no Edifício Martinelli, na esquina das ruas São Bento e Líbero badaró, um dos mais elegantes da cidade. No dia seguinte, domingo, fomos até a Estação da Luz para embarcar no trem noturno para o Rio de Janeiro, e de lá para o Recife, onde iniciaríamos nossa vida de casados. Eu estava deslumbrada com as mudanças em tão curto tempo, deixara de ser uma jovem tímida e de pouca vivência para me transformar na esposa do gerente de uma firma conceituada. É... eu estava vivendo meu conto de fadas...

Quando chegamos à estação, ambas as famílias nos aguardavam para o indispensável bota-fora. Para nossa surpresa, havia até uma banda de música. Depois de muito choro e abraços, embarcamos, e só então descobrimos que os músicos não estavam ali para tocar em nossa homenagem, mas de uns japoneses que viajaram no vagão vizinho.

Não posso esquecer a figura do Valde, tão cheio de energia e alegria, que até o fum de sua vida parecia um garotão. Guardo sempre na lembrança sua figura alegre, entrando em nossa casa depois de tocar um sino que ficava na entrada e dizendo em voz alta: "Ele chegou, ele chegou. Cadê o café?" Corríamos todos para cumprimentá-lo.

Meu tio Valde Mário Arnaldo, o oitavo vilho dos Zwarg, era um rapaz bonito, pinta de galã, alto e do tipo esquio, olhos castanhos com reflexos esverdeados, cabelos castanho-escuros e lisos. Usava-os repartidos quase no meio da cabeça e penteados para trás, um visual que conservou até o fim da vida. Quanto ao temperamento, pode-se dizer que era um menino levado, sempre divertido, admirador do sexo fraco - só admirador, pois era muito bem casado!

Quando era pouco mais que um adolescente, por volta dos dezesseis anos, dedicou-se à fotografia. Mais tarde, já formado em ciências contábeis, fundou o Centro dos Motoristas, firma que dirigiu por longos anos com grande êxito. Mas não parou por aí. Abriu outra empresa do mesmo ramo, porém maior, abrangendo sócios de todas as categorias, para dar assistência a veículos acidentados ou com qualquer defeito, registrada como Automóvel Clube de São paulo, que até hoje existe na Rua Martim Francisco, no bairro de Santa Cecília. Valde teve grande êxito nessas empresas, o que lhe permitiu oferecer à família uma vida de bastante conforto. Mais velho, abriu uma ótica numa galeria na Rua 7 de Abril, esquina com a Praça Frei Gaspar, no centro da cidade, que com o tempo se transferiu para o município de Osasco. Foi ali que, depois de uma vida de muito trabalho, veio a falecer, de ataque cardíaco.

Impéria Fortuna de Lucca, sua mulher, foi uma verdadeira companheira. Era uma mulher bonita, inteligente, traços fidalgos, rosto oval, nariz pequeno e bem feito, pele clara, braços e pernas compridos e lindas mãos, de dedos finos e longos e unhas sempre tratadas e esmaltadas de vermelho. Quando jovem, Impéria trabalhou num ateliê de costura frequentado pela alta sociedade. Depois de casada, deixou de trabalhar fora, mas continuou costurando em casa, já que não conseguiu ficar inativa.

Lembro de tio Theo, o aventureiro da família. Ainda jovem, enfrentou a perda da esposa, Almachia, falecida durante o parto de seu quarto filho, Ismael, que acabou sendo criado por tia Céa. Desencantado, Theo resolveru voltar com os filhos maiores para Campo Grande e juntar-se à família da mulher. Passado algum tempo, contraiu matrimônio com a irmã de Almachia, Ágda, com quem teve mais três filhos. Viveram felizes durante muitos anos, até que Theo teve que amputar uma perna. Revelando uma grande coragem, comportava-se como se não tivesse sido nada grave, não deixando de contar seus "causos", como dizia. Impressionou a todos pela força com que aceitou seu destino, sem se queixar, até sua morte.

Entre lembranças minhas e reminiscências que me foram sendo contadas, guardo muito dos meus avós maternos, únicos que conheci. Essas são algumas dessas lembranças...Trazem-me grande saudade e muita gratidão. Acredito que se vencemos na vida, se somos o que somos, devemos a eles. E se temos alguma coisa de bom, herdamos deles. Eles foram nosso melhor exemplo. Obrigada, meus avós.

Lamento que a vida passe tão depressa e não tenhamos tempo de apreciar as qualidades dos que nos são caros. Felizes daqueles que chegam à velhice, porque têm a oportunidade de fazer uma introspecção.

 

Texto e Fotos extraídos do livro "Uma Família Muito Especial"
Beatriz Pacheco de Toledo


Árvore Genealógica dos Zwarg no Brasil

 

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